Abandono familiar entre crianças de Mato Grosso é o maior do país
Amor não existe. O que existe é gostar”, declara Ana*, 9. Ela foi vítima de abandono de incapaz aos dois anos, quando sua mãe foi embora e a deixou sob os cuidados do pai. “Meu pai não me ama e nunca me amou. Eu gosto da tia e ela gosta de mim”, diz ao se referir à responsável pela unidade de acolhimento.
“Meu pai saía cedo e me deixava sozinha para limpar a casa e fazer comida, mas eu não sabia fazer essas coisas. Tinha dia que eu subia no muro e pedia um pouquinho de comida para o vizinho, outros dias eu tinha medo, preferia ficar quieta e não comia nada, ficava com dor de fome”, conta.
Um dia, em meio à pandemia, um dos vizinhos ouviu seus gritos de dor por ter cortado o pé ao pisar em uma garrafa e acionou a polícia. Acompanhada de conselheiras tutelares, a polícia encaminhou a menina para uma unidade de acolhimento de Rondonópolis, interior do Estado de Mato Grosso. Na residência não havia comida nem água. Roupas, objetos e lixo estavam espalhados pelos cômodos. Ela não estava indo às aulas e também não tinha contato com outras pessoas. Seu pai estava bebendo em um bar próximo dali. O ano era 2020. Ana tinha então sete anos.
Mais tarde, Ana foi transferida para um abrigo na cidade de Cuiabá (MT), onde permanece aguardando por uma família definitiva. Ela não tem notícias de seu pai e recebe mensalmente a visita de uma amiga da família que não tem condição de criá-la.
Infâncias desamparadas no Brasil e os efeitos da pandemia
Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022 apontam que, em 2020, foram 7.145 registros de abandono de incapaz com vítimas de 0 a 17 anos em todo o país. Já em 2021, o número saltou para 7.908, um crescimento de 11,1% nas taxas por 100 mil pessoas nesta faixa etária.
Mato Grosso lidera o ranking com a maior taxa de abandono de incapaz entre quem tem de cinco a nove anos: foram 155 casos em 2020 (taxa de 57,5) e 184 casos em 2021 (67). A taxa de crianças abandonadas entre zero e quatro anos passou de 48,7 para cada 100 mil habitantes, em 2020, para 58,4, em 2021. Bem maior que a taxa nacional de 15,7, em 2020, e 19,6, em 2021.
Maria das Graças Gomes da Costa, juíza da Vara da Infância e Juventude da Comarca de Rondonópolis, considera a pandemia da covid-19 um dos motivos para esse aumento. “Muitos pais perderam o emprego e ficaram em situação de vulnerabilidade, sem ter como fornecer subsistência para os filhos. Outros precisaram continuar trabalhando, sendo obrigados a deixar as crianças sem os cuidados de um responsável”, enfatiza. Outra suposição para o aumento dos números é a retomada dos registros após um período de subnotificações decorrido do isolamento social. A juíza lembra que não é somente o abandono que a criança sofre que a afasta de sua família de origem, mas as violências física e psicológica, inclusive casos de abuso sexual.
Segundo a Legislação Brasileira, o crime de abandono de incapaz envolve “abandonar pessoa que está sob seu cuidado, guarda, vigilância ou autoridade, e, por qualquer motivo, incapaz de defender-se dos riscos resultantes do abandono”, o que inclui a orfandade, mas não só.
Com oito anos de trabalho, a conselheira tutelar da cidade de Sinop (MT), Angelica Gasperi, relata que casos de abandono de incapaz são comuns: seja de mães que precisam trabalhar ou responsáveis que abandonam por motivos fúteis. Ela compartilha um caso quando encontraram duas crianças, de seis e dez anos, que estavam abandonadas há cinco dias. “A mãe delas havia viajado a lazer com o namorado. As duas precisavam fazer a comida e não iam à escola, porque não tinha quem as supervisionasse”. Angelica enfatiza que as crianças tiveram todos os seus direitos violados e sofreram abandono de incapaz e violências intelectual, moral e psicológica.
A conselheira encaminhou as crianças ao Centro Social Menino Jesus, uma instituição filantrópica que acolhe crianças de até 12 anos em situação de abandono, oferecendo assistência médica, psicológica e pedagógica. Decorridas 24 horas, o juiz da Vara da Infância e Juventude foi acionado e decidiu que elas ficariam no local, por não terem parentes próximos. “Após alguns dias, a mãe, ainda em viagem, entrou em contato conosco e passou o telefone de parentes que poderiam ficar com elas. Elas foram encaminhadas para o Estado do Pará para serem cuidadas pelos avós maternos”, acrescenta.
A responsável pelo abrigo, Sirlei Maria Cichelero, conta que a rotina das crianças que ali vivem é o mais próximo possível de um ambiente familiar. “A maioria das crianças que vem morar aqui teve uma história sofrida e queremos que elas se sintam bem. Os primeiros dias são de adaptação e, aos poucos, elas aprendem a rotina da casa. Tudo tem horário: acordar, café, escola, tarefas, atividades da casa e lazer”, diz. Além de passeios, como idas ao shopping, cinema e teatro, “elas podem receber visita de familiares e amigos, desde que sejam autorizadas pela Justiça. Tudo é organizado de forma que amenize o sentimento de abandono ou de tristeza. Quando completam 12 anos, uma nova audiência é realizada e cada criança é encaminhada para uma outra unidade de abrigo que aceite adolescentes. Ao atingir a maioridade, quem não conseguiu emprego é transferido para uma república, finaliza.
Os tipos de abandono
- Abandono material – acontece quando se deixa de prover, sem justa causa, a subsistência de um menor de 18 anos.
- Abandono intelectual – ocorre quando o responsável deixa de garantir a educação primária do menor sem justa causa ou quando se permite que o menor frequente casas de jogos.
- Abandono afetivo – é caracterizado pela indiferença afetiva de um genitor em relação a seus filhos, ainda que não exista abandono material e intelectual.
“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão” – artigo 227, da Constituição Federal.
Os impactos do abandono à vida adulta
Matheus perdeu os pais em um acidente de carro, em 2010. Com 15 anos e sem parentes que tivessem condições de criá-lo, foi encaminhado para uma unidade de abrigo em Poconé, interior de Mato Grosso. Hoje, com 27 anos, Matheus sabe muito bem o que é viver anos na esperança de ser adotado: pela idade e cor, o adolescente negro foi sendo deixado de lado na escolha de diversas famílias.
“Cheguei a ir para a casa de uma família que tinha uma filha mais velha, mas não me adaptei e voltei para o abrigo. Me senti tão culpado por não conseguir me encaixar naquela casa. Queria que eles fossem iguais aos meus pais, mas não eram. Me convenci de que iria ficar no abrigo até completar a maioridade”, lembra.
Para o menino, que frequentava uma escola no bairro do abrigo, datas comemorativas, como o Dia dos Pais e Dia das Mães, eram “os piores momentos dessa fase da minha vida”, descreve. “Eu via meus colegas contando como foi o domingo deles e ficava bem quieto. Ia para o banheiro da escola chorar sem que ninguém visse.”
Aos 18 anos, após terminar os estudos combinados entre um curso técnico e o ensino médio, Matheus se despediu do abrigo e foi morar de aluguel ao conseguir um estágio em uma madeireira, que se tornou seu emprego formal. A criança que sofre abandono costuma procurar um lugar onde possa se sentir segura, mas ele conta que nem todos têm a mesma sorte: alguns foram obrigados a deixar o abrigo mesmo sem ter emprego e um meio de se sustentar.
Matheus é um homem reservado e até hoje sofre os efeitos dos três anos que passou em um abrigo: ele tem crise de ansiedade, problemas de autoestima e dificuldade de manter relacionamentos por longo tempo.
Thamires de Oliveira Muniz, psicóloga da infância e adolescência, explica que o abandono, seja ele qual for, deixa marcas para o resto da vida nas vítimas por ser interpretado como uma falta de valor para com a outra pessoa, sendo fundamental o tratamento psicológico para minimizar esses efeitos na fase adulta.
“As crianças desenvolvem sentimento de culpa, têm baixa autoestima, dificuldade de criar vínculos, baixo rendimento nos estudos e algumas passam a ser violentas com elas mesmas ou com os outros”. Thamires também coloca os relacionamentos abusivos como uma possível consequência. “Uma criança que não recebeu amor suficiente vai se contentar e se apegar ao mínimo carinho que receber na vida adulta, mesmo que seja em meio a outras violências”, salienta.
Para a juíza Maria das Graças, faltam políticas públicas, pois é “responsabilidade do Estado oferecer uma rede de apoio e acolher essas famílias, com suporte psicológico e condições mínimas de subsistência para os pais. Precisamos também ampliar as vagas em CEIs (Centros de Educação Infantil), para que as mães possam ter a liberdade de trabalhar e deixar seus filhos sendo bem cuidados”, observa. Além disso, a juíza destaca ações de conscientização e conhecimento sobre o funcionamento das unidades de abrigo e a criação de apadrinhamento afetivo para crianças que já tenham sido destituídas do poder pátrio e estão à espera da adoção.
* O nome da personagem foi alterado para preservar sua identidade.
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