Lutero, o monge católico que abriu portas para surgimento de igrejas evangélicas

Lutero, o monge católico que abriu portas para surgimento de igrejas evangélicas

Em 1971, período em que ditaduras militares avassalavam pensamentos críticos na América Latina, Gustavo Gutiérrez publicou a obra citada por Frei Betto, Uma teologia da libertação: história, política, salvação, traduzida para 20 idiomas.

“Olha, foi muito incômoda”, lembra o frade brasileiro sobre a publicação da obra. “Foi como explodir uma bomba destruindo aquela catedral de conceitos liberais, dirigidos pela teologia liberal da Europa, porque toda a teologia que nós respirávamos e aprendíamos nos seminários era predominantemente [baseada] em conceitos europeus, uma visão da doutrina cristã, uma visão dos evangelhos pela ótica dos opressores, dos colonizadores.”

Frei Betto analisa que o pensamento de Gutiérrez veio da origem do sacerdote, ligado ao povo quechua, tradicional de regiões andinas. O religioso peruano escreveu a obra como uma forma de evidenciar a verdadeira linhagem indígena que compõe a América Latina, servindo de alerta para o próprio continente que não tinha essa percepção aflorada na época, defende o frade.

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Segundo ele,  a Teologia da Libertação nunca foi completamente censurada pelo Vaticano, mas sofreu um “freio de mão”, o que retraiu seu avanço a partir dos anos 1980.

Isso, para Frei Betto, não significou uma estagnação. Pelo contrário: ele acredita que a teologia segue avançando, ganhando adeptos e cada vez mais atualizadas com as questões da sociedade, como debates de gênero, avanço tecnológico e, tambéma crise climática.

Inclusive, o religioso defende que as ideias estão mais impulsionadas do que nunca por conta de um amigo de longa data de Gutiérrez, o argentino papa Francisco.

“Papa Francisco é um homem da Teologia da Libertação, muito identificado com ela. E o Francisco foi muito amigo do Gustavo, a quem recebeu várias vezes, inclusive o hospedou na Casa Santa Marta, no Vaticano, onde o Francisco mora.”


“Ele é muito contundente ao modelo atual de capitalismo. Em nenhum momento ele usa a palavra capitalismo, mas ele sempre abre todo um horizonte para um outro mundo pós-capitalista, que ele também não chama de socialista, mas ele abre essa reflexão.”


Na entrevista, Frei Betto fala mais de sua relação com Gutiérrez e compara a trajetória do peruano com a do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

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Confira a entrevista na íntegra 

Como o senhor conheceu Gustavo Gutiérrez?

Eu conheci o Gustavo, primeiro, pelo livro Teologia da Libertação, que ele lançou em 1971 e foi editado aqui no Brasil pela editora Vozes, que é uma editora católica com sede em Petrópolis [RJ], e aquilo me encantou muito.

Depois que eu saí da prisão, eu só fui ter contato com o Gustavo pessoalmente pela primeira vez em 1980, em janeiro. Eu já estava fora da prisão quando, em São Paulo, se organizou o Encontro da Associação dos Teólogos do Terceiro Mundo.

E ali estava o Gustavo participando, e isso, então, nos aproximou muito.

Ele já era uma figura pública muito conhecida na época?

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Sim, pelo fato dele ter feito uma revolução na reflexão religiosa, que a gente diz reflexão teológica.

Os ensinamentos da igreja eram todos pela ótica europeia, pela ótica que a gente chama de liberal e não pela ótica de libertação.

E o Gustavo inverteu esse processo, ele falou: “a fé precisa ser pensada a partir da opção preferencial de Jesus, que foi a opção pelos pobres.”

Então, com isso, ele formulou toda a arquitetura da fé cristã por novas categorias, a partir dos pobres e também a partir, sobretudo, da prática das comunidades eclesiais de base.

Isso foi extremamente impactante não só na América Latina, mas em todo mundo.

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De onde que a gente pode dizer que surgiu todo esse ímpeto para a formulação da Teologia da Libertação?

Tem a ver com origem dele, que, assim como o Lula, é uma pessoa muito preocupada com a questão social, porque veio da miséria. O Lula foi retirante no nordestino, a mãe dele se locomoveu com oito filhos para São Paulo, tentando sobreviver.

O Gustavo tem uma origem quechua. O pai dele era assumidamente indígena e ele sempre guardou essa característica. Então ele fez essa revolução epistemológica encarando a fé cristã pela ótica dos oprimidos, que, aliás, diga-se de passagem, é uma característica dos peruanos. Porque, também no Peru, nós tivemos um teórico marxista muito importante, pouco conhecido, chamado José Carlos Mariátegui [1894-1930], que releu o marxismo a partir da ótica latina-americana, e advertiu aos comunistas de que havia uma grande falha deles em não abordar o mundo indígena.

Qual foi a reação da igreja com o início da propagação da Teologia da Libertação?

Olha, foi muito incômoda. Foi como explodir uma bomba destruindo aquela catedral de conceitos liberais, dirigidos pela teologia liberal da Europa. Porque toda a teologia que nós respirávamos e aprendíamos nos seminários era predominantemente [baseada] em conceitos europeus, uma visão da doutrina cristã, uma visão dos evangelhos pela ótica dos opressores, dos colonizadores.

E o Gustavo fez com a sua obra uma reinvensão disso.

“Não, nós temos que encarar o evangelho pela óptica dos oprimidos”, que foi a maneira como Jesus encarou a torá, que é o antigo testamento cristão. Ou seja, Jesus era um judeu, mas um judeu dissidente, um judeu questionador, tanto que foi condenado pela parte pelo poder judaico e pelo poder humano.

Como a Teologia da Libertação tem avançados nesses anos?

A Teologia da Libertação não nasceu no gabinete dos teólogos. Ela nasceu da prática das comunidades eclesiais de base. Elas eram muito incisivas em toda a América Latina, principalmente no Brasil, antes do pontificado de João Paulo II.

Ele jamais condenou a Teologia da Libertação, como jamais condenou as comunidades eclesiais de base, que são a matéria-prima da Teologia da Libertação.

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Mas ele colocou um freio de mão, e isso fez refluir muito da Teologia da Libertação e das comunidades eclesiais de base.

Hoje elas não são mais tão predominantes quanto nos anos 1980, 1990, 2000, mas ela continua avançada porque, hoje, inclusive, ela aborda temas que, nos anos 1980, não eram ainda tão frequentes na nossa reflexão teológica, como a questão identitária, a questão de gênero, a questão da ecologia, a questão da nanotecnologia e das novas tecnologias digitais.

Tudo isso hoje é abordado por vários teólogos da libertação e, no Brasil, nós temos o principal ecoteólogo do mundo que é o Leonardo Boff, que associa a reflexão teológica à questão da preservação ambiental.

A chegada do papa Francisco de alguma maneira, foi uma consequência de toda essa luta que Gustavo Gutiérrez?

Sem dúvida nenhuma. Papa Francisco é um homem da Teologia da Libertação, muito identificado com ela. E o Francisco foi muito amigo do Gustavo, que recebeu várias vezes, inclusive o hospedou na Casa Santa Marta, no Vaticano, onde o Francisco mora.

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Ele é muito contundente ao modelo atual de capitalismo. Em nenhum momento ele usa a palavra capitalismo, mas sempre abre todo um horizonte para um outro mundo pós-capitalista, que ele também não chama de socialista, mas ele abre essa reflexão.

Portanto, se há alguém muito identificado, é o Francisco, que, inclusive, tem muito apreço pelos teólogos da libertação. A mim, ele recebeu duas vezes, em 2014 e no ano passado, em 2023.

Podemos relacionar a Teologia da Libertação e todo esse movimento iniciado por Gustavo Gutiérrez a criação de movimentos populares no Brasil, como o MST?

Sem dúvida nenhuma. A Teologia da Libertação vem da prática das comunidades eclesiais de base, das pastorais populares, da Comissão Pastoral da Terra [CPT] que deu origem ao MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra].

É a matriz disso e é muito importante a teologia da libertação num continente como a América Latina, onde a cultura predominante capilar do nosso povo é religiosa.

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Se você perguntar a um camponês, a uma empregada doméstica, a uma faxineira, qual é a sua visão de mundo, certamente ela dará uma resposta em categorias religiosas.

Então, esse é o grande mérito da Teologia da Libertação. Reler a revelação cristã pela ótica dos oprimidos.

E quais seriam os maiores desafios que a gente tem hoje para avançar da Teologia da Libertação?

Um desafio que está diante do avanço da Teologia da Libertação, de incidência muito forte, são os Estados Unidos. O governo dos Estados Unidos, que é um governo imperialista, alertou que a Teologia da Libertação fazia mais mal para os seus interesses na América Latina do que o marxismo.

E daí passou a financiar as igrejas eletrônicas, essas igrejas da prosperidade, essas igrejas alienantes, essas igrejas que submetem milhões de fiéis a categorias próprias do capitalismo, de serem abnegados com seu sofrimento, ou de acreditarem na meritocracia, ou de acreditarem que você, tendo esforços empreendedoristas, vai sair da pobreza, sem nenhuma consciência de que não existe pobre, existem pessoas empobrecidas.

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Todos os pobres que nós conhecemos são resultado desse neoliberalismo capitalista que priva as pessoas pela estrutura social em que vivemos, do acesso aos bens essenciais à vida. Porque a sociedade em que vivemos, ela tem como valor, entre aspas, essa palavra “valor”, a acumulação privada da riqueza. E a acumulação privada da riqueza faz com que essa riqueza não seja partilhada, compartilhada por milhões de pessoas que acabam condenadas à pobreza.

O senhor comentou que o papa Francisco prega a Teologia da Libertação e abre ideias para um sociedade pós-capitalista mas sem citar esse termo, tampouco socialismo. Isso te parece uma decisão acertada? Ou o ideal seria que ele usasse esses conceitos para ajudar na propagação de conceitos anticapitalistas?

No caso do papa Francisco, é melhor que ele continue mineramente atuando, né? Porque ele é um representante de uma religião universal, ele é uma referência com muita autoridade, para vários segmentos cristãos.

Pouca gente sabe disso, mas a igreja católica não se restringe a esse catolicismo que nós conhecemos no Brasil e no mundo ocidental. Ela tem 24 vertentes religiosas, inclusive com hábitos, costumes e visões diferentes pelo resto do mundo, principalmente no Oriente.

Então, acho que o papa Francisco é muito hábil ao não utilizar palavras que causam um certo impacto em ouvidos formados pelo preconceito.

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Hoje vemos que o Brasil está se transformando em um país evangélico. Como o senhor analisa que a política vem influenciando esse processo?

É muito importante levar em conta que a cultura do povo é fortemente religiosa, saber lidar com a questão religiosa. E o pessoal de esquerda nem sempre soube lidar com isso.

Agora é importante o que eu vou dizer: é preciso evitar a confessionalização do Estado, como queria o [ex-presidente Jair] Bolsonaro. Quando, inclusive, falou que ia nomear um ministro [do Supremo Tribunal Federal] terrivelmente evangélico.

E, ao mesmo tempo, é preciso também a gente evitar a ideologização por parte da ação das igrejas. As igrejas devem estar, na minha opinião, na linha de Jesus, que é a adopção pelos pobres, mas você não pode, como padre ou pastor, direcionar os votos dos seus fiéis.

Eu preciso esclarecê-los sobre as causas dos males sociais, mas sem partidarizar. Esse equilíbrio a direita jamais consegue. A direita é que sempre partidariza as religiões e, ao mesmo tempo, confessionaliza o Estado.

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E o Lula, felizmente, tem mantido esse equilíbrio. O Lula também é um adepto da Teologia da Libertação. Ele é um cristão assumido e tem tido uma muito boa relação com as igrejas em geral.

E isso é muito importante porque a religião talvez seja o sistema de sentido mais abrangente do ser humano. Porque ela não só explica a nossa origem, a origem do universo, mas, também, o que vai ocorrer com cada um de nós após a morte.

E isso nenhum outro sistema de sentido é capaz de abranger. Então é muito importante ter presente que o pensamento religioso, ele é visceral, ele é importante, ele é determinante na vida das pessoas.

O senhor comentou que a Teologia da Libertação nasce de um movimento de aproximar a América Latina de sua origem latina. Hoje vivemos uma crise climática, na qual todas as soluções apontam para a defesa destes povos originários. O senhor acredita que podemos estar vivendo uma nova fase da Teologia da Libertação frente aos atuais dilemas do mundo?

Eu vejo essa relação e o Leonardo Boff. Como teólogo da libertação, ele se equipara ao Gustavo Gutiérrez, como pai da Teologia da Libertação, e tem trabalhado muito esse tema.

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Mas eu não acho que seja a teologia que vai conseguir isso. É uma visão política que vai conseguir isso, é preciso derrubar o marco temporal, demarcar as terras indígenas, valorizar a cultura e a religião dos povos originários, enfim.

Não necessariamente a Teologia da Libertação que fará isso. Isso é algo que extrapola as fronteiras da teologia para ser uma questão de direitos humanos, de cultura, de leis importantes para um país onde nós temos praticamente um milhão de indígenas assumidos.

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