Maus-tratos contra crianças e adolescentes crescem 21,3%, mas mortes caem no país

O número de registros de maus-tratos a crianças e adolescentes subiu 21,3% em 2021 no país, de acordo com dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Foram 19.136 vítimas de 0 a 17 anos, sendo que 36% delas têm entre 5 e 9 anos, e 26% de 0 a 4 anos. Em 2020 eram 15.846 ocorrências nesta faixa etária.

A taxa, que era de 29,8 vítimas por 100 mil habitantes no país, subiu para 36,1. Para Sofia Reinach, pesquisadora associada do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e gerente sênior de programas de prevenção e enfrentamento a violências da Vital Strategies Brazil, a pandemia contribuiu para subnotificações do crime, sobretudo quando o isolamento por causa da Covid-19 estava mais rígido.

“A subida tão expressiva desse número se deve à queda significativa dos registros em 2020. Isso não significa que tenha sido um ano de baixa violência, mas sim que os casos não chegaram às delegacias. Estamos recuperando os níveis de 2019 e vendo o aumento devido a esse período que as crianças ficaram em isolamento social, mais distantes da escola. Presença na escola é um fator importante para que os crimes cheguem à polícia”, afirma.

Para o cientista social Lucas Lopes, especialista em direitos humanos e políticas públicas, coordenador da Agenda 227, a pandemia foi um catalisador de violência contra crianças e adolescentes.

“Há casos subnotificados, já que escolas e espaços educativos deixaram de fazer as denúncias. Professores são responsáveis por identificar não só as marcas físicas, mas também as mudanças de comportamento da criança. Elas tendem a procurar um adulto de confiança para revelar a violência sofrida e isso traz responsabilidade para a notificação”, relata.

Hoje as crianças e adolescentes no Brasil são em maior número vítimas de violência sexual, segundo o estudo. Na sequência, estão os maus-tratos. Crimes que ocorrem dentro das residências.

Recentemente, o país ficou chocado com o caso de estupro de uma menina de 11 anos que engravidou após a violência em Santa Catarina. A gestação foi mantida até a 29ª semana, quando foi dada a autorização judicial para o aborto.

“É um retrato do perfil das vítimas de violência sexual no Brasil. Entre 10 e 14 anos estão a maior parte das vítimas de estupro e, majoritariamente, do sexo feminino. De maus-tratos o perfil varia mais: a maioria é masculina, mas não tão expressiva, e atinge muito crianças de 0 a 4 anos”, pontua Sofia Reinach.

São crimes cometidos por pessoas conhecidas das vítimas. Ainda assim, os boletins de ocorrência não trazem detalhes dos agressores, não têm campos preenchidos, o que prejudica o entendimento das circunstâncias do crime.

Abandono de incapaz

O abandono de incapaz teve alta de 11,1% nas taxas por 100 mil pessoas. Em 2020, foram 7.145 registros desse tipo de crime com vítimas de 0 a 17 anos no país. Esse número saltou para 7.908 em 2021. A maior taxa está entre 5 e 9 anos.

São situações em que a criança ou o adolescente sofreu algum tipo de negligência, normalmente de pais ou responsáveis. Um dos casos que o Brasil acompanhou foi o do menino Miguel, que foi deixado sozinho dentro de um elevador pela patroa da mãe, Sari Corte Real.

O garoto de 5 anos caiu do prédio de luxo em Recife, em junho de 2020. Sari foi condenada a oito anos e seis meses de prisão por abandono de incapaz com resultado morte.

De acordo com o levantamento do Anuário, “as principais vítimas são os não tão jovens sobre os quais há maior controle e nem as mais velhas, que têm condições de se defender dos riscos”.

A violência intrafamiliar reduz as chances de a criança pedir ajuda ou de revelar espontaneamente que foi vítima

LUCAS LOPES, CIENTISTA SOCIAL

Há ainda o abandono material. O crime apresenta baixa incidência, com 801 registros em 2020 e 763 em 2021, queda de 4,3% na taxa por população de 100 mil. “Nota-se, assim, uma menor incidência de registros de abandono material para as crianças mais novas. Ou seja, na medida em que as crianças vão ficando mais velhas, pais e mães, na grande maioria das vezes os primeiros, têm menos pudor em deixar de garantir a subsistência a seus filhos”, analisaram as pesquisadoras no Anuário.

Maus-tratos e lesão corporal

O documento aponta para uma alta nos registros de lesão corporal em contexto de violência doméstica, passando de 18.180 vítimas de 0 a 17 anos em 2020 para 18.461 em 2021. A taxa entre vítimas de 15 a 17 anos é maior que 100 casos por 100 mil habitantes.

Os crimes têm maior incidência em Mato Grosso (193), Santa Catarina (82,9), Rondônia (68) e Mato Grosso do Sul (60,8), bem acima da taxa nacional, que foi de 34,9.

Registros de violência doméstica contra crianças 2020-2021por faixa etária

REPRODUÇÃO / ANUÁRIO DE SEGURANÇA PÚBLICA

O ex-vereador do Rio de Janeiro Jairinho e Monique Medeiros foram indiciados como os principais suspeitos da morte do menino Henry Borel, padrasto e mãe da criança. O crime aconteceu em 8 de março de 2021 no apartamento onde morava. O laudo apontou hemorragia interna e ferimentos graves no fígado que ocasionaram a morte da criança de 4 anos.

“As crianças são vítimas de crimes domésticos que se agravam e viram crime letal, como é o caso do Henry Borel. Violências domésticas sucessivas que acabam no pior tipo de violência. Será que era possível a gente ter evitado esse crime se essas violências tivessem sido identificadas antes?”, questiona a pesquisadora.

Estupro de vulnerável

Os casos de estupro de vulnerável chegaram a 45.076 registros em 2021. De acordo com o estudo, a taxa de incidência é de 96,8 pessoas a cada 100 mil nessa faixa etária. Apenas as crianças com até 13 anos totalizam 35.735 vítimas no ano passado.

Lucas Lopes lembra que, nos casos de violência sexual, os agressores são, na maioria, conhecidos das vítimas. “A violência intrafamiliar reduz as chances da criança pedir ajuda ou de revelar espontaneamente que foi vítima. Com o confinamento, isso se tornou ainda mais complicado”, enfatiza.

Os adolescentes morrem aos milhares no Brasil, majoritariamente meninos, negros, que são vítimas da violência urbana e de armas

SOFIA REINACH, PESQUISADORA

De acordo com Sofia Reinach, esta é a primeira vez que um levantamento nacional de crimes contra crianças e adolescentes é feito e o Anuário aborda também ocorrências de pornografia infanto-juvenil e exploração sexual infantil.

“Crimes de exploração sexual e pornografia infantil têm poucos registros. A gente espera que, cada vez mais, levantando essa estatística, a gente chame atenção para esses números e tenha mais crimes sendo registrados para que possam entrar em todo o sistema de justiça”, destaca Sofia Reinach.

Segundo o estudo, foram 1.767 vítimas de pornografia infanto-juvenil em 2020 e 1.797 em 2021, Mais da metade das vítimas tem entre 10 e 14 anos. Os casos de exploração sexual também aumentaram: em 2020 foram 683 registros contra 733 em 2021.

“Esse resultado indica mais um esforço institucional insuficiente por parte das polícias em investigar e combater esse tipo de delito do que necessariamente uma baixa ocorrência dos fatos criminosos na realidade social. O próprio relatório da PRF indica mais de 3.651 pontos vulneráveis nas rodovias federais”, escreveram as pesquisadoras.

Assassinatos

O Anuário indica que, em 2021, sete crianças ou adolescentes foram vítimas da violência letal por dia no Brasil. Foram 2.555 assassinatos de 0 a 17 anos. O indicador foi o único de queda em relação a 2020, quando foram registradas 3.001 mortes.

Para o cientista social, é importante ressaltar que a análise da redução nos homicídios não deve ser feita apenas em uma leitura otimista porque a pandemia impactou nos dados. Houve menos óbitos uma vez que as pessoas circularam menos pelas ruas e cidades.

Os adolescentes do sexo masculino são 87,8% das vítimas entre 12 e 17 anos.

“Os adolescentes morrem aos milhares no Brasil, majoritariamente meninos, negros, que são vítimas da violência urbana, em geral, vítimas de arma de fogo”, descreve Sofia Reinach. Ela complementa: “Mesmo entre as crianças, a desigualdade já se faz presente: 66,3% das vítimas são negras e 31,3% brancas. Entre os adolescentes, essa hiper representatividade de vítimas negras salta para espantosos 83,6%”.