O documentário “A Última Dança”, disponível na plataforma Netflix, conta os bastidores da temporada final de Michael Jordan no Chicago Bulls e a busca pelo sexto título da NBA, a liga norte-americana de basquete. Para Daniel Dias, a Paralimpíada de Tóquio (Japão) deste ano tem um quê de última dança – ou, no caso dele, de última braçada. Principal nome da história do paradesporto brasileiro, o nadador de 32 anos anunciou que encerrará a carreira após os Jogos na capital japonesa.
Os números evidenciam a história que Daniel escreveu em piscinas do Brasil e do exterior. São 24 medalhas paralímpicas, sendo 14 de ouro. Na Rio 2016, ele se tornou o homem com mais pódios na história da modalidade nos Jogos. São, também, 40 medalhas em Mundiais (31 de ouro) e 33 em Jogos Parapan-Americanos, todas douradas. O paulista de Campinas (SP), porém, entende que seu maior feito esteja fora d’água.
“Acredito que o legado eu deixo é mostrar o valor da pessoa, do ser humano. A ferramenta esporte possibilitou que crianças e pessoas sem deficiência me vissem como exemplo. Esse é um legado intangível. As pessoas entenderam que a deficiência não nos define e que somos capazes de alcançar nossos sonhos e objetivos”, disse o nadador, em entrevista exclusiva à Agência Brasil, após decidir por um ponto final na carreira para estar mais próximo dos filhos Asaph, Daniel e Hadassa.
Além de 24 medalhas olímpicas, Daniel Dias coleciona ainda 40 medalhas em Mundiais (31 de ouro) – acima foto no Mundial de Londres (Inglaterra) em 2019 – e 33 em Jogos Parapan-Americanos, todas douradas – ALE CABRAL/CPB
“A família é a base de tudo para mim. Tive que abdicar de algumas coisas, inclusive de estar mais perto deles, para me dedicar e treinar. Em nenhum momento me arrependo disso. Sou muito grato a Deus pela minha esposa [Raquel], que ficou na retaguarda e cuidou de todos os detalhes. Eu precisava, hoje, curti-los mais. Eles estão chegando a uma fase importante da vida, quero estar presente em questões que, enquanto atleta, eu não conseguia. Isso pesou bastante”, explica.
A despedida das piscinas após Tóquio não significa a saída do movimento paralímpico. Pelo contrário.
“Não me vejo na borda da piscina [como técnico], mas, sem dúvida, nos bastidores eu me imagino, sim, ajudando de alguma maneira. Eu gostaria de me dedicar mais ao Instituto Daniel Dias [projeto de fomento ao esporte, criado por ele em 2014, voltado a crianças e adolescentes com deficiência]. Agora, será uma dedicação maior, para que, como eu, que conheci o esporte com 16 anos, outros jovens de várias idades também possam conhecê-lo. A gente acha que só a criança é transformada [pelo esporte], mas a família que tem uma criança com deficiência também é transformada”, destaca.
Luta futura
Membro do Conselho Nacional de Atletas e da Assembleia Geral do Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB), Daniel também pretende atuar próximo ao Comitê Paralímpico Internacional (IPC, na sigla em inglês). Um tema que o nadador quer discutir após Tóquio é o dos critérios da classificação funcional, processo de análise pelo qual os atletas paralímpicos passam para saber em qual classe estão e se estão aptos a competir no movimento.
Na Paralimpíada Rio 2016, Dias se tornou o homem com mais pódios na história da modalidade nos Jogos, após conquistar 24 medalhas, 14 delas de ouro – Fernando Maia/MPIX/CPB/Direitos reservados
Para entender: a natação paralímpica tem 14 divisões. A S14 é de competidores com deficiência intelectual. As categorias S11 a 13 reúnem atletas com deficiência visual. Já as classes S1 a S10 são voltadas a nadadores com deficiências físico-motoras, nas quais quanto maior o número, menor é o grau de comprometimento. Daniel, que nasceu com má formação nos membros superiores e na perna direita, é da S5. É nesta classe que ele conquistou as inúmeras medalhas e estabeleceu vários recordes mundiais.
Após a Paralimpíada do Rio, porém, o sistema de classificação funcional sofreu mudanças. Atletas que nadavam em categorias acima (portanto, com menor comprometimento físico-motor que Daniel) foram transferidos para a do brasileiro. Caso do italiano Francesco Bocciardo, campeão paralímpico da classe S6 nos 400 metros nado medley. Em contrapartida, o carioca André Brasil, que competia na classe S10, pela qual foi medalhista de ouro paralímpico e mundial, foi considerado inelegível, exceto nas disputas do nado peito – que não é sua especialidade.
“A minha decisão [da aposentadoria após Tóquio] foi tomada sem pensar na questão da classificação. Mas, sendo bem sincero, quero falar disso, porque me chateia. Enquanto atleta, dediquei minha vida à natação pela credibilidade que a gente veio ganhando. A verdade é: como explicar que o Daniel era recordista e agora não é mais, mesmo fazendo os melhores tempos da vida? Como explicar que o meu adversário foi campeão no Rio em uma classe acima? São coisas difíceis”, argumenta o nadador. E acrescenta: “Eles [IPC] precisam ouvir os atletas. A gente entende a importância da classificação, ela define a vida do atleta. Precisamos que seja o mais claro e justo possível, coerente. Não é algo que a gente vê hoje. Espero que, após Tóquio, como ex-atleta, eu possa contribuir mais. Quero brigar por isso”.
Inspirações
A temporada que marca a aposentadoria de Daniel é também a 17ª de uma carreira que, ele próprio admite, iniciou “tarde”, aos 16 anos. A inspiração foi outro nadador. Na Paralimpíada de 2004, Clodoaldo Silva brilhou nas piscinas de Atenas (Grécia) com seis medalhas de ouro. Curioso é que o único esporte que o paulista não praticou na infância, até se encantar com os feitos de Clodoaldo, era justamente aquele que o consagrou.
Daniel Dias ao lado de Clodoaldo Silva, que foi sua inspiração na adolescência para começar a nadar. Ambos conquistaram medalhas no Parapan de Toronto (Canadá), em 2015 – Jonne Roriz/MPIX/CPB
“Eu jogava futebol, basquete, disputava campeonatos. Cheguei até a fazer handebol e vôlei. Consegui fazer alguns esportes. Mas natação eu não fiz [risos]. Não tinha em Camanducaia [cidade do interior mineiro onde Daniel morou na infância]. Eu não conhecia o paradesporto. Mas, ali, a ferramenta esporte já estava sendo importante. Lembro dos grandes desafios que tive quando criança, passar por preconceito, momentos difíceis que a gente enfrenta. O esporte foi fundamental para me ajudar a entender que, ali no futebol, assim como meus amigos chutavam e brincavam, eu também fazia. Não era a deficiência que me impedia”, conta.
O contato com o movimento paralímpico veio e, com ele, a aproximação com atletas não só das piscinas, mas de outras modalidades, durante as várias participações em Paralimpíadas e Jogos Parapan-Americanos. Além do próprio Clodoaldo, com quem esteve lado a lado a partir dos Jogos de 2008, em Pequim (China), Daniel cita outras inspirações.
“O Yohansson [Nascimento, campeão paralímpico no atletismo e atual vice-presidente do CPB] é excepcional como atleta e pessoa. A gente via o peso e a referência dele no atletismo e junto à seleção. O Renato [Leite, da seleção de vôlei sentado] é outro líder nato, ficava feliz quando a gente se reunia e conversava. O Clodoaldo, claro, a gente via o quanto ele cativava a quem estava com ele e a liderança junto à delegação. Outro que é uma grande referência é o Antônio Tenório [tetracampeão paralímpico no judô]. A carreira que ele construiu é para deixar qualquer um de queixo caído. Toda Paralimpíada que vai, ganha medalha”, descreve.
Partiu, Tóquio
A Paralimpíada de Tóquio será entre 24 de agosto e 5 de setembro deste ano. Para finalizar a carreira com chave (e mais medalhas) de ouro, Daniel treina forte em Bragança Paulista (SP), onde mora. São cinco a sete treinos semanais em piscina, mais duas a três vezes de preparação física. O cronograma de competições, porém, ainda é uma incógnita. O calendário de competições nacionais foi suspenso até junho, devido à pandemia do novo coronavírus (covid-19). O circuito mundial foi confirmado pelo IPC, começa em abril e vai ate junho, mas, sem a etapa brasileira. As disputas serão em Sheffield (Reino Unido), Indianapolis (Estados Unidos), Lignano Sabbiadoro (Itália), Austrália (cidade não definida) e Berlim (Alemanha).
“Competição faz muita falta. Há mais de um ano e alguns meses que a gente não compete. Teve [a etapa do circuito mundial em] Berlim no ano passado, mas não fomos. Poucos atletas estiveram lá. A retomada [dos eventos] é fundamental na preparação. Só treinar não te dá um parâmetro. Mas a gente não quer deixar isso afetar e tenta simular, por meio das tomadas de tempo, para poder avaliar o trabalho. A gente sabe que não é a mesma coisa, mas já faz uma avaliação”, analisa. “Os treinos estão a todo vapor. Quero chegar em Tóquio na minha melhor versão e melhorar minhas marcas. Que seja uma temporada de muitas realizações e conquistas”, conclui.
A última dança – ou braçada – de Daniel Dias já começou.
Fonte: agenciabrasil.ebc.com.br/esportes/noticia/2021-01/coluna-ultima-danca
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