Coluna – A última dança | Agência Brasil

O documentário “A Última Dança”, disponível na plataforma Netflix, conta os bastidores da temporada final de Michael Jordan no Chicago Bulls e a busca pelo sexto título da NBA, a liga norte-americana de basquete. Para Daniel Dias, a Paralimpíada de Tóquio (Japão) deste ano tem um quê de última dança – ou, no caso dele, de última braçada. Principal nome da história do paradesporto brasileiro, o nadador de 32 anos anunciou que encerrará a carreira após os Jogos na capital japonesa.imagem18-01-2021-18-01-30imagem18-01-2021-18-01-31

Os números evidenciam a história que Daniel escreveu em piscinas do Brasil e do exterior. São 24 medalhas paralímpicas, sendo 14 de ouro. Na Rio 2016, ele se tornou o homem com mais pódios na história da modalidade nos Jogos. São, também, 40 medalhas em Mundiais (31 de ouro) e 33 em Jogos Parapan-Americanos, todas douradas. O paulista de Campinas (SP), porém, entende que seu maior feito esteja fora d’água.

“Acredito que o legado eu deixo é mostrar o valor da pessoa, do ser humano. A ferramenta esporte possibilitou que crianças e pessoas sem deficiência me vissem como exemplo. Esse é um legado intangível. As pessoas entenderam que a deficiência não nos define e que somos capazes de alcançar nossos sonhos e objetivos”, disse o nadador, em entrevista exclusiva à Agência Brasil, após decidir por um ponto final na carreira para estar mais próximo dos filhos Asaph, Daniel e Hadassa.

15.09.2019   Mundial de Paranatação de Londres 2019

Além de 24 medalhas olímpicas, Daniel Dias coleciona ainda 40 medalhas em Mundiais (31 de ouro) – acima foto no Mundial de Londres (Inglaterra) em 2019 – e 33 em Jogos Parapan-Americanos, todas douradas – ALE CABRAL/CPB

“A família é a base de tudo para mim. Tive que abdicar de algumas coisas, inclusive de estar mais perto deles, para me dedicar e treinar. Em nenhum momento me arrependo disso. Sou muito grato a Deus pela minha esposa [Raquel], que ficou na retaguarda e cuidou de todos os detalhes. Eu precisava, hoje, curti-los mais. Eles estão chegando a uma fase importante da vida, quero estar presente em questões que, enquanto atleta, eu não conseguia. Isso pesou bastante”, explica.

A despedida das piscinas após Tóquio não significa a saída do movimento paralímpico. Pelo contrário.

“Não me vejo na borda da piscina [como técnico], mas, sem dúvida, nos bastidores eu me imagino, sim, ajudando de alguma maneira. Eu gostaria de me dedicar mais ao Instituto Daniel Dias [projeto de fomento ao esporte, criado por ele em 2014, voltado a crianças e adolescentes com deficiência]. Agora, será uma dedicação maior, para que, como eu, que conheci o esporte com 16 anos, outros jovens de várias idades também possam conhecê-lo. A gente acha que só a criança é transformada [pelo esporte], mas a família que tem uma criança com deficiência também é transformada”, destaca.

Luta futura

Membro do Conselho Nacional de Atletas e da Assembleia Geral do Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB), Daniel também pretende atuar próximo ao Comitê Paralímpico Internacional (IPC, na sigla em inglês). Um tema que o nadador quer discutir após Tóquio é o dos critérios da classificação funcional, processo de análise pelo qual os atletas paralímpicos passam para saber em qual classe estão e se estão aptos a competir no movimento.

Rio de Janeiro,16 de setembro de 2016.   JOGOS PARALÍMPICOS RIO 2016   Natação   50m costas masculino S5   Daniel Dias   Medalha de ouro

Na Paralimpíada Rio 2016, Dias se tornou o homem com mais pódios na história da modalidade nos Jogos, após conquistar 24 medalhas, 14 delas de ouro – Fernando Maia/MPIX/CPB/Direitos reservados

Para entender: a natação paralímpica tem 14 divisões. A S14 é de competidores com deficiência intelectual. As categorias S11 a 13 reúnem atletas com deficiência visual. Já as classes S1 a S10 são voltadas a nadadores com deficiências físico-motoras, nas quais quanto maior o número, menor é o grau de comprometimento. Daniel, que nasceu com má formação nos membros superiores e na perna direita, é da S5. É nesta classe que ele conquistou as inúmeras medalhas e estabeleceu vários recordes mundiais.

Após a Paralimpíada do Rio, porém, o sistema de classificação funcional sofreu mudanças. Atletas que nadavam em categorias acima (portanto, com menor comprometimento físico-motor que Daniel) foram transferidos para a do brasileiro. Caso do italiano Francesco Bocciardo, campeão paralímpico da classe S6 nos 400 metros nado medley. Em contrapartida, o carioca André Brasil, que competia na classe S10, pela qual foi medalhista de ouro paralímpico e mundial, foi considerado inelegível, exceto nas disputas do nado peito – que não é sua especialidade.

“A minha decisão [da aposentadoria após Tóquio] foi tomada sem pensar na questão da classificação. Mas, sendo bem sincero, quero falar disso, porque me chateia. Enquanto atleta, dediquei minha vida à natação pela credibilidade que a gente veio ganhando. A verdade é: como explicar que o Daniel era recordista e agora não é mais, mesmo fazendo os melhores tempos da vida? Como explicar que o meu adversário foi campeão no Rio em uma classe acima? São coisas difíceis”, argumenta o nadador. E acrescenta: “Eles [IPC] precisam ouvir os atletas. A gente entende a importância da classificação, ela define a vida do atleta. Precisamos que seja o mais claro e justo possível, coerente. Não é algo que a gente vê hoje. Espero que, após Tóquio, como ex-atleta, eu possa contribuir mais. Quero brigar por isso”. 

Inspirações

A temporada que marca a aposentadoria de Daniel é também a 17ª de uma carreira que, ele próprio admite, iniciou “tarde”, aos 16 anos. A inspiração foi outro nadador. Na Paralimpíada de 2004, Clodoaldo Silva brilhou nas piscinas de Atenas (Grécia) com seis medalhas de ouro. Curioso é que o único esporte que o paulista não praticou na infância, até se encantar com os feitos de Clodoaldo, era justamente aquele que o consagrou.

08/08/2015   Canadá, Toronto, CIBC Aquatics Centre   Finais de natacao no CIBC em Toronto. Na foto Daniel Dias e Clodoaldo Silva durante cerimonia de medalha dos 100m live

Daniel Dias ao lado de Clodoaldo Silva, que foi sua inspiração na adolescência para começar a nadar. Ambos conquistaram medalhas no Parapan de Toronto (Canadá), em 2015  – Jonne Roriz/MPIX/CPB

“Eu jogava futebol, basquete, disputava campeonatos. Cheguei até a fazer handebol e vôlei. Consegui fazer alguns esportes. Mas natação eu não fiz [risos]. Não tinha em Camanducaia [cidade do interior mineiro onde Daniel morou na infância]. Eu não conhecia o paradesporto. Mas, ali, a ferramenta esporte já estava sendo importante. Lembro dos grandes desafios que tive quando criança, passar por preconceito, momentos difíceis que a gente enfrenta. O esporte foi fundamental para me ajudar a entender que, ali no futebol, assim como meus amigos chutavam e brincavam, eu também fazia. Não era a deficiência que me impedia”, conta.

O contato com o movimento paralímpico veio e, com ele, a aproximação com atletas não só das piscinas, mas de outras modalidades, durante as várias participações em Paralimpíadas e Jogos Parapan-Americanos. Além do próprio Clodoaldo, com quem esteve lado a lado a partir dos Jogos de 2008, em Pequim (China), Daniel cita outras inspirações.

“O Yohansson [Nascimento, campeão paralímpico no atletismo e atual vice-presidente do CPB] é excepcional como atleta e pessoa. A gente via o peso e a referência dele no atletismo e junto à seleção. O Renato [Leite, da seleção de vôlei sentado] é outro líder nato, ficava feliz quando a gente se reunia e conversava. O Clodoaldo, claro, a gente via o quanto ele cativava a quem estava com ele e a liderança junto à delegação. Outro que é uma grande referência é o Antônio Tenório [tetracampeão paralímpico no judô]. A carreira que ele construiu é para deixar qualquer um de queixo caído. Toda Paralimpíada que vai, ganha medalha”, descreve.

Partiu, Tóquio

A Paralimpíada de Tóquio será entre 24 de agosto e 5 de setembro deste ano. Para finalizar a carreira com chave (e mais medalhas) de ouro, Daniel treina forte em Bragança Paulista (SP), onde mora. São cinco a sete treinos semanais em piscina, mais duas a três vezes de preparação física. O cronograma de competições, porém, ainda é uma incógnita. O calendário de competições nacionais foi suspenso até junho, devido à pandemia do novo coronavírus (covid-19). O circuito mundial foi confirmado pelo IPC, começa em abril e vai ate junho, mas, sem a etapa brasileira. As disputas serão em Sheffield (Reino Unido), Indianapolis (Estados Unidos), Lignano Sabbiadoro (Itália), Austrália (cidade não definida) e Berlim (Alemanha).

“Competição faz muita falta. Há mais de um ano e alguns meses que a gente não compete. Teve [a etapa do circuito mundial em] Berlim no ano passado, mas não fomos. Poucos atletas estiveram lá. A retomada [dos eventos] é fundamental na preparação. Só treinar não te dá um parâmetro. Mas a gente não quer deixar isso afetar e tenta simular, por meio das tomadas de tempo, para poder avaliar o trabalho. A gente sabe que não é a mesma coisa, mas já faz uma avaliação”, analisa. “Os treinos estão a todo vapor. Quero chegar em Tóquio na minha melhor versão e melhorar minhas marcas. Que seja uma temporada de muitas realizações e conquistas”, conclui.

A última dança – ou braçada – de Daniel Dias já começou.

Fonte: agenciabrasil.ebc.com.br/esportes/noticia/2021-01/coluna-ultima-danca